19 Março 2021
O Partido Republicano se tornou um partido de nacionalismo branco. Se a política tradicional não consegue mudar isso, devemos considerar alternativas.
O artigo é de Bernard E. Harcourt, professor de Direito e de Ciência Política da Universidade de Columbia, Nova York, publicado por Boston Review, 07-01-2021. A tradução é de Jádia L. Timm dos Santos, doutoranda em Ciências Criminais no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS.
Diretamente derrotado na eleição de 2020, o que impediu um segundo mandato, o [ex-]presidente dos Estados Unidos [Donald Trump] [1], organizou uma contrarrevolução em 06 de janeiro de 2021 – dia em que o Congresso iria confirmar os resultados do Colégio Eleitoral. O cenário visto era sem precedentes. Uma turba invadiu o Capitólio, tomando conta da Câmara e do Senado e saqueando o gabinete da presidente da Câmara dos Representantes [Nancy Pelosi]. Instigada por aquele, a insurreição foi viabilizada pelos líderes do Partido Republicano, os quais, por meses, recusaram-se a reconhecer o resultado da eleição.
Essa contrarrevolução demorou para ocorrer. E sua erupção escancara a profunda fissura deste país.
São raros os momentos em que os americanos discordaram tão drasticamente, pelo menos não desde a Reconstrução. [2] O paralelo não é anódino. Naquele momento, o desentendimento se deu sobre a verdade moral da supremacia branca. Atualmente ela está mais oblíqua e mais bem disfarçada, mas relações envolvendo raça persistem no centro do conflito. Não soará como surpresa o fato de que 1876 foi a última vez em que uma transição presidencial havia sido tão contestada – um momento em que a “democracia da abolição”, como W.E.B. Du Bois a chamou, estava por um fio e, por fim, pereceu ao lado da Reconstrução.
Assim como em 1876, o conflito político de hoje é permeado pela raça. Ao longo dos últimos quatro anos, durante a campanha de 2020 e no seu desfecho, Donald Trump capturou a alma do Partido Republicano e a impregnou com seu nacionalismo branco. Dificilmente a dimensão racial poderia ser mais óbvia agora, devido aos flagrantes esforços dos Republicanos para invalidar os votos de afro-americanos na Geórgia e em cidades como Detroit, Milwaukee e Filadélfia. Esse antagonismo, contudo, vinha sendo colocado em curso há anos.
Desde o primeiro dia na presidência, Trump ostentava o nacionalismo branco e atiçava a direita supremacista. Lembre-se que, apenas quatro dias após a posse, ele assinou o Muslim ban, uma ordem executiva que fechou as fronteiras dos EUA para sete países predominantemente muçulmanos e que suspendeu indeterminadamente a entrada de refugiados sírios. Ele ordenou que a fronteira mexicana fosse fechada para os latino-americanos que buscavam asilo, para que não conseguissem chegar ao território dos EUA. E se isso já não bastasse, separou pais e filhos migrantes na fronteira, colocando as crianças em jaulas. Mais tarde, ele chamou os neonazistas reunidos em Charlottesville de “pessoas muito distintas” e defendeu os monumentos confederados. Referiu-se ao Haiti e às nações africanas como países de “merda” [shithole countries]. Ele ordenou que agentes federais e militares atacassem os protestantes do #BlackLivesMatter e incitou racismo contra líderes negros como o congressista Elijah Cummings e o Squad. E, ao invés de implementar uma política que pudesse ter prevenido uma perda massiva de pessoas, ele chamou a COVID-19 de “Kung Flu”, [3] mentiu sobre o vírus enquanto ele arrastava as pessoas à pobreza e continua matando milhares de americanos todos os dias – pessoas negras de maneira desproporcionalmente maior.
Embora o presidente eleito Joseph Biden tenha confortavelmente conquistado o voto popular – recebendo em torno de sete milhões de votos a mais que Trump – a vantagem foi apertada em sete estados decisivos: Geórgia, Wisconsin, Michigan, Pensilvânia, Arizona e Nevada. Noutras palavras, apesar de todos os atos racistas e xenófobos de Trump, seu eleitorado se manteve leal e até mesmo cresceu em dez milhões de votos. Do auge de sua supremacia branca e xenofobia, Trump recebeu mais de setenta e quatro milhões de votos, vencendo no Partido Republicano. Isso não foi apesar de suas ações, mas em virtude delas. Donald Trump revigorou o nacionalismo branco na política dos EUA e, como seus apoiadores deixaram muito claro, é improvável que ele sucumba tão cedo.
Certamente a supremacia branca não é novidade. Ela tem conduzido os Estados Unidos desde o seu nascimento enquanto país – do compromisso escravocrata na fundação constitucional até a secessão sulista e o fim da Reconstrução; à repressão violenta ao movimento em prol dos direitos civis; à Guerra às Drogas do Presidente Nixon; e por todo percurso ao longo de décadas de um encarceramento em massa racializado. O seu longo legado assombra o nosso presente, quando a escravidão perfeitamente metamorfoseou-se em um sistema de leasing de condenados, de prisões plantation e de linchamentos generalizados antes de se transformar no horror que são as cadeias e prisões de hoje.
Embora, como dito, a supremacia branca não seja exatamente algo novo, a incitação promovida por Trump não tem precedentes na política mais recente. Trump tem sido um mestre na reativação dessa força histórica, atingindo diretamente o nervo central do nacionalismo branco. Ele o fez em 2016, para ganhar popularidade – fazendo circular inverdades acerca da origem de Barack Obama, alegando falsamente uma origem muçulmana para alimentar hostilidade contra o primeiro presidente negro eleito. E isso foi antes de Trump estar no cargo presidencial, quando, de fato, o nacionalismo branco passou a ter espaço em seu poderoso púlpito.
Durante a campanha de 2020, Trump declarou-se abertamente um nacionalista branco a quem quisesse escutá-lo. No primeiro debate presidencial, quando chamado a repudiar a supremacia branca, ao invés disso, ele a defendeu. Em rede nacional, diante de mais de 73 milhões de espectadores, Trump disse aos Proud Boys – a milícia mais extremista, de direita, neofascista e composta apenas por homens – para que “esperassem”, dirigindo-se a eles como se realmente fosse seu comandante. Durante um comício em Minnesota, Trump invocou a teoria eugenista da pureza racial [racehorse theory] e disse a uma multidão que as pessoas de Minnesota, em sua maioria branca, têm “bons genes”.
Ao longo da campanha, Trump alimentou o fogo da supremacia branca. Ele declarou ser contra a remoção de estátuas de confederados no país e, ao mesmo tempo, chamou o Black Lives Matter de “símbolo de ódio” – transformando antirracismo em racismo, um dos movimentos-chave dos supremacistas ao redor do mundo. Trump envolveu-se na bandeira preta e branca, com uma listra azul dos EUA, símbolo do estado de polícia e do privilégio branco associado à réplica “Blue Lives Matter”. Ele fez campanha diante de uma falange dessas bandeiras da alt-right durante um comício em Wisconsin em outubro de 2020. Em meio à onda de mentiras que espalha no Twitter, Trump também retuitou o vídeo de um casal branco em St. Louis, que do pátio de sua mansão apontava armas para os manifestantes do Black Lives Matter (BLM), endossando tacitamente tal comportamento.
Em Minnesota, Trump chamou os manifestantes do BLM de marginais e advertiu: “quando a pilhagem começar, o tiroteio começará”. Na viagem para Kenosha, no auge da morte de Jacob Blake pela polícia, ele disse que os oficiais que atiraram no Sr. Blake deveriam ser “enforcados”. Em gritante contraste, quando um apoiador de dezessete anos idade, Kyle Rittenhouse, atirou e matou duas pessoas, além de ferir uma outra, durante um protesto do BLM, Trump justificou as ações de Rittenhouse, alegando que ele estava agindo em legítima defesa. Trump atacou o Projeto 1619 do New York Times e expediu uma ordem executiva com vistas a banir a teoria racial crítica. E como a pandemia da COVID-19 matou milhares e milhares de cidadãos americanos, atingindo de forma desproporcionalmente maior as comunidades negras, Trump se esbaldou e continuou a referir-se à pandemia como o “vírus chinês”.
Para quem de fato estava escutando, Trump fez campanha como um nacionalista branco. Já quem não se dispôs a ouvir isso, estava simplesmente exercendo o seu privilégio – em geral, o seu privilégio branco. Através de suas provocações constantes e irritantes, jogando combustível no fogo do supremacismo branco, Trump triunfou na ativação e energização do que agora se tornou uma força política insurrecional.
Há certas forças na política que despertam paixões – medo e ódio, por exemplo. Trump alavancou tais paixões políticas, misturando-as a um racismo profundo e à xenofobia, e amarrando-as a uma grande força política: a nostalgia. Trump atou o racismo à esperança de reconduzir os Estados Unidos a sua grandeza passada, de “fazer a América grande de novo” – uma expressão que foi firmada no período da segregação racial dos anos 1950.
Nesse processo, Donald Trump transformou o Partido Republicano numa facção branco-nacionalista fascinada por sua popularidade nas pesquisas eleitorais e no seu sucesso em angariar fundos. As consequências são evidentes, à medida que os líderes republicanos e as bases fizeram de tudo para defender a tentativa de golpe de Trump ao longo de novembro e dezembro – e, em sua maioria, ainda o fazem hoje.
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É demasiadamente cômodo colocar o fascínio de 74 milhões de eleitores sobre Trump como resultado de mentiras e bullying. É excessivamente simplista descrever nossa atual polarização como uma suposta sociedade da “pós-verdade”.
Basta apenas ouvir a Fox News por um minuto para constatar que eles também reivindicam a verdade. Isso fica clarividente no recente editorial de Tucker Carlson sobre a fraude na eleição, o qual ele finalizou da seguinte maneira: “Por que estamos dizendo isso a vocês? Nós estamos contando isso a vocês porque é verdade, e, no final, é isso que conta. A verdade é nossa única esperança e nossa melhor defesa. É a maneira pela qual nos diferenciamos deles: Nós nos importamos com o que é verdade e sabemos que vocês também”. Todo mundo aposta em uma pretensão de verdade, porque a verdade é a arma política mais poderosa que temos.
Contudo, fundamentalmente, existem diferentes tipos de verdades em jogo nesse momento contrarrevolucionário. Algumas envolvem questões reais, outras são mais complexas e implicam em visões políticas de mundo. Elas conduzem a verdades políticas mais amplas sobre liberdade e uma sociedade ordenada. Trump conseguiu captar uma dessas visões de mundo, unindo-a a sua mistura única de racismo e xenofobia – seu nacionalismo branco – e, nesse processo, jogou o país à divisão.
Em seu ensaio “Verdade e Política”, para o New Yorker, Hannah Arendt distinguiu o que ela chamou de “verdades factuais” e “verdades racionais”. Esta, segundo a autora, consiste em teorias filosóficas ou políticas, axiomas matemáticos ou descobertas científicas. Verdades factuais, contrariamente, são acontecimentos que ocorrem no mundo. Por verdades factuais, Arendt tinha em mente fatos pesados, como o fato de que a Alemanha invadiu a Bélgica na noite de 04 de agosto de 1914 – ou, talvez, no presente, o fato de que 74.223.744 americanos votaram em Donald Trump e 81.283.485 em Joseph Biden (isso em 07 de janeiro de 2021).
Arendt alegou que verdades factuais são mais frágeis do que verdades racionais, porque uma vez que aquelas desaparecem, elas têm menos chances de reaparecerem. Verdades reais podem ser inalteradamente modificadas, como advertiu Arendt.
Entretanto, esse não é o único perigo, nem, quiçá, o maior perigo dos dias atuais. Mesmo se concordássemos com uma série de verdades factuais, é a interpretação feita acerca delas que nos divide. O que realmente importa são as verdades políticas que carregamos – e a maioria de nós tende a escolher e selecionar as verdades factuais que correspondem as nossas visões políticas. Estudos psicológicos demonstram a tendência que as pessoas têm em conformar suas crenças, incluindo crenças factuais, aos valores mais profundos que definem as suas identidades culturais e políticas. Por baixo das divergências sobre as verdades factuais, existe, então, um abismo mais profundo entre as visões políticas.
De um lado, está a visão política que valoriza a liberdade, esta entendida como a não intervenção e regulação do governo, privilégios e autonomia, geralmente caracterizada pelo direito ao porte de armas. Nessa visão, o governo é visto como corrupto, e sua intervenção como algo maléfico – seja na forma de socialismo, comunismo, bem-estar social ou qualquer outra forma de governo que faça distribuição de renda aos pobres. A partir de tal perspectiva, verdades factuais – inclusive verdades incontestadas – são construídas sob um ponto de vista bem diferente. As revelações trazidas pelo New York Times, por exemplo, de que Trump pagou apenas 750 dólares de tributos federais em 2017, não são vistas como corrupção, mas como evidências do tino comercial de Trump e de seu sucesso em blindar sua renda de um governo distributivista. Aos olhos de seu eleitorado, isso o torna um herói.
Do outro lado do espectro político, está a crença de que um estado bem-regulado assegura saúde, segurança e bem-estar a todos os seus residentes; garante uma rede social aos mais vulneráveis; promove igualdade de oportunidades; e coopera com aliados em nível internacional. Nessa visão, o governo não é um inimigo, mas, ao invés disso, quando bem gerido, um guardião da seguridade social, da saúde pública e da isonomia em oportunidades. Uma imposição nacional pelo uso de máscara não é considerada uma constrição à liberdade; ao menos não mais do que representa a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança e de licenças para pesca, por exemplo. A liberdade é mitigada pelo bem comum. A partir dessa perspectiva, a intervenção governamental agora é uma demanda urgente e necessária para implementar políticas públicas que respondam às crises gêmeas do presente: COVID-19 e a injustiça a que esse país tornou hábito rigoroso sobre as pessoas de cor.
É o disparate das visões políticas, mais do que as discordâncias factuais, que dividem nosso país hoje. Trump conseguiu unir liberdade ao nacionalismo branco e, assim, tornou-se a figura política cult que trouxe bandos de Republicanos às urnas e ao ataque ao Capitólio. Trump explorou um abismo anterior ao seu mandato e o aprofundou ainda mais.
E são essas as verdades políticas beligerantes atualmente. Essas visões de mundo são tidas como verdades evidentes, como nossos antepassados declararam. De um lado, a liberdade que brande bandeiras americanas e cartazes com o nome de Trump. Do outro, um governo regulado e isonomia cidadã, com a promessa de Biden de retomar a política à normalidade.
Os Estados Unidos estão em guerra pela verdade da liberdade, no estilo do nacionalismo branco.
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Ainda que a democracia dos Estados Unidos sobreviva à contrarrevolução de janeiro, a essa ressurgência do nacionalismo branco e ao ataque da liderança republicana às eleições democráticas; um espectro ameaça esse país mais do que nunca. Trump reavivou uma força que, ainda que esteja em uma minoria – considerando o número total de pessoas, pode facilmente conservar seu poder.
Mesmo com o presidente eleito Biden na Casa Branca em 20 de janeiro de 2021, Trump não vai recuar, como a maioria dos presidentes geralmente faz. Ele vai reunir suas bases para as eleições de meio de mandato e para 2024. Essa é uma prospectiva extremamente problemática, dado o fato que seus apoiadores acreditam que ele ganhou a eleição e estão convencidos de que ele deveria ser presidente e têm mostrado que estão dispostos a rebelarem-se. Diante desse contexto político, as visões concorrentes de mundo se afastam perigosamente.
Uma alternativa é utilizar todos os meios necessários para persuadir os demais acerca de nossas verdades políticas. Barbara Ransby afirma que precisamos de uma transformação social radical, e que a única forma de o fazer é intervindo na esfera pública:
Devemos arregaçar as mangas, superar nossas adversidades e entrar em templos, centros comunitários, campi universitários, agências de emprego, feiras estaduais, salas de bate-papo e esquinas de ruas. Precisamos falar, escutar, debater, criar confiança e chamar as pessoas para um processo de construção de visão e de liberdade. Não podemos pensar que temos todas as respostas, mas, de fato, temos algumas respostas. E precisamos oferecer às pessoas uma porta de entrada ao processo radicalmente democrático da transformação social abalizado em procedimentos e princípios. A outra via não é, assim, o fim da estrada, mas um precipício mortal.
Por isso, precisamos trazer mais apoiadores de Trump para o nosso lado. É isso que, por suposto, fazemos na política – convencemos aos outros da verdade segundo a nossa visão de mundo, da verdade de acordo com a nossa interpretação dos fatos.
Isso pode se dar através de argumentação e persuasão, através de carisma, através de medo – e, às vezes, através de absoluta dominação.
No seu extremo, a política significa derrotar oponentes nas eleições – derrotando-os da maneira mais ampla, firme e frequente quanto possível. Poder-se-ia chamar isso de guerra por outros meios. Foi isso que os progressistas fizeram nas eleições de 2020 – com sete milhões de votos na eleição presidencial e garantindo a maioria no Senado. E com um horizonte demográfico multicultural favorecendo o lado progressista, é provável que isso siga acontecendo.
No entanto, também houve momentos nos quais o choque entre as verdades políticas mostrou ser profundo demais para ser superado. Foi o caso do supremacismo branco em Antebellum South. Também foi verdade para a ideologia nazista da Alemanha nos anos 1930. Assim como na França de Vichy. Durante esses períodos, há apenas um número limitado de ações possíveis. Podemos nos engajar na política por outros meios, no sentido de guerra total, ou podemos nos separar através de divisões ideológicas irreconciliáveis.
Esta última, a secessão, não deve mais ser descartada tão levianamente. Reforçado pela maneira complacente que permitiu que a turba de Trump tumultuasse o Capitólio – imagine o que teria acontecido se fossem manifestantes do Black Lives Matter – não é difícil imaginar o momento em que divisões tornar-se-ão densas demais para uma reconciliação. Qualquer crescimento do nacionalismo branco poderia provocar esse ponto de ruptura no país. Por mais difícil que seja acreditar nisso.
O que isso significaria é difícil de compreender, mas, no melhor cenário imaginável, poderia envolver uma separação consensual, com cidadãos ao redor do país separando-se em dois ou mais estados soberanos. As fronteiras poderiam se dar ao longo de divisões azuis e vermelhas, ou linhas urbanas e rurais. A dívida nacional atual seria dividida, assim como as obrigações vinculadas à previdência social. Poderia haver uma União Americana, como a União Europeia, sem taxação; poderia haver uma Organização do Tratado Americano para assegurar a defesa comum. Todos os detalhes poderiam ser resolvidos em uma convenção constitucional, pacificamente. Mas, de alguma maneira, se esse nacionalismo branco continuar a crescer, chegará o momento em que a secessão não estará tão longe.
Pode-se, inclusive, imaginar uma “secessão digital”. Com a tecnologia atual, é possível pensar em duas soberanias políticas virtuais – uma progressista, outra branco-nacionalista – e cada americano poderia optar entre elas. Assistência médica universal de contribuição única para alguns; nenhuma cobertura de saúde para outros. Ensino superior gratuito para alguns; dívidas esmagadoras de empréstimos estudantis para outros. Sem parasitismos, portanto. Residentes seriam presos perpetuamente ou converteriam a pena em pagamento integral das dívidas vencidas. Todos seriam identificáveis através de suas impressões digitais. Isso tudo pode parecer fantasioso – assim como o era o Twitter e o Facebook trinta anos atrás.
A questão é, se não somos capazes de barrar ou conter esse nacionalismo branco, outros meios serão necessários.
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Ainda há espaço para o otimismo. As forças do nacionalismo branco já foram derrotadas em outros momentos nesse país. O sul escravista foi vencido na Guerra Civil. Ressuscitado, foi derrotado novamente durante o Movimento dos Direitos Civis.
No entanto, nunca houve um acerto de contas definitivo. Nunca houve um reconhecimento sincero nem uma reconciliação genuína. Muitos americanos continuam a erguer impunes a bandeira dos Confederados ou, agora, a bandeira branca e preta com uma fina listra azul dos EUA – como o fizeram no prédio do Capitólio. E isso reprimiu aquelas histórias, tornando-as feridas purulentas cutucadas por Trump. Alguns – como o Projeto 1619 do New York Times ou o brilhante time do Equal Justice Initiative em Montgomery, Alabama – estão enfrentando essa ausência, auxiliando o país a reconciliar-se com seu passado; mas esses esforços agora vão em corrente contrária ao exército de mais de 74 milhões de eleitores de Donald Trump.
W.E.B. Du Bois demonstrou em Black Reconstruction in America como a ambição da democracia da abolição foi esmagada pós-Guerra Civil e, com o seu declínio e o desfecho violento da Reconstrução, como a nação conduziu uma nova forma de despotismo racial. A menos que reconheçamos completamente que estamos enfrentando, uma vez mais, o poder do nacionalismo branco e tudo aquilo que aqueles 74 milhões de eleitores defendem, estaremos fadados a continuar neste caminho.
A tarefa mais urgente e preocupante para a democracia americana hoje é arrancar o capuz branco do voto em Trump e reconhecer o que a eleição de 2020 e as demonstrações da contrarrevolução nos mostram: o poder e a ameaça do nacionalismo branco.
E o próximo passo urgente é convencer os eleitores de Trump de que sua visão de liberdade, no estilo do nacionalismo branco, é moralmente repreensível e está condenada. Isso é política à moda antiga, guerra por outros meios, mas se isso não funcionar, então é momento de reconsiderar as alternativas.
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Com o ressurgimento do nacionalismo branco na política dominante e da contrarrevolução em sua visualização plena, por vezes tenho me sentido como um estranho em meu próprio país. Meu pai veio para cá em 1940, aos trinta anos de idade, um judeu refugiado em fuga da onda nazista que assolava a França. Ele teve sorte; nem todos em nossa família conseguiram escapar. Filho de não apenas um, mas de ambos os pais imigrantes, que se tornou mais americano que seus próprios vizinhos, nasci e me criei na cidade de Nova York. Esta é a minha casa.
Em tempos como os de agora, assistindo a atos de insurreição do nacionalismo branco incitados pelo líder mais importante de nosso país, eu olho para a história de minha família e recordo-me que não se possui um dever absoluto para com a terra ou a soberania. Possui-se, sim, o dever absoluto para com a vida e para com seus valores – no meu caso, solidariedade, justiça social, igualdade e autonomia. Eu também me recordo que não se deve morrer por esses valores, mas lutar por eles.
Ainda que isso signifique uma política à moda antiga, política por outros meios ou ainda imaginando uma secessão mútua, é hora de redobrarmos a luta, uma vez mais, contra o ódio e o preconceito. Como sabemos, independentemente da cor de nossa pele, a luta contra o nacionalismo branco é uma luta pela vida de todos.
[1] Nota da tradutora (N.T.): Este artigo foi escrito em 07 de janeiro de 2021, dias antes de Joe Biden, atual presidente dos EUA, tomar posse.
[2] N.T.: Período histórico nos EUA que teve início em 1865, pós-Guerra Civil, estendendo-se até 1877. Marcou o retorno gradual dos estados confederados e da abolição da escravatura.
[3] Alusão aos termos “Kung Fu”, arte marcial chinesa, e “Flu”, gripe em inglês.
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A batalha à frente. Artigo de Bernard E. Harcourt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU